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sábado, 24 de setembro de 2011

TERRA DE GIGANTES

Cangurus de 2 metros de altura, herbívoros do tamanho de um rinoceronte, aves enormes incapazes de voar e um predador que podia dar conta de todos esses animais. Com a chegada dos seres humanos, a variada megafauna que habitava a Austrália desapareceu. Os cientistas procuram agora descobrir: esses animais foram vítimas de uma caçada humana ou da Era Glacial?

As Grutas Naracoorte ficam na bucólica região vinícola da Austrália do Sul, a quatro horas de carro de Adelaide por estradas solitárias que conduzem ao oceano Meridional. As videiras prosperam no solo avermelhado que recobre o calcário poroso como uma camada de glacê. Embora belíssima, essa região também pode ser traiçoeira. O terreno está repleto de buracos, muitos do tamanho de uma mesa pequena, conhecidos como fojos, ou armadilhas de covas. Os buracos são profundos e se estendem até cavernas envoltas nas trevas mais absolutas. Tais fojos já engoliram muitos cangurus que se moviam aos saltos durante a noite.
Um dia, em 1969, Rod Wells, um caçador de fósseis principiante, foi a Naracoorte para explorar uma caverna chamada na época de gruta Victoria.
Essa era uma antiga atração turística, dotada de escadarias, corrimãos e iluminação elétrica. Mas Wells e meia dúzia de companheiros avançaram além da parte turística, abrindo caminho por galerias estreitas e escuras. Quando notaram uma brisa sugestiva soprando de um monte de cascalho, sabiam que havia uma câmara mais adiante.
 Wells e um de seus companheiros se espremeram por uma fresta e deram em um salão imenso, cujo extenso piso de terra vermelha estava atulhado de objetos estranhos. Wells levou um instante até perceber o que tinha diante dos olhos. Ossos, muitos ossos. Os restos mortais de incontáveis vítimas dos fojos.
A gruta de fósseis Victoria, como é conhecida agora, abriga ossadas de cerca de 45 mil animais. Alguns dos ossos mais antigos pertenciam a criaturas bem maiores e mais temíveis que quaisquer espécies hoje existentes na Austrália. Essas criaturas formavam a antiga megafauna australiana - imensos animais que vagavam pelo continente durante a era pleistocênica.
Em outros depósitos de ossos similares dispersos por toda a Austrália, os cientistas já toparam com fósseis de uma serpente gigante; uma imensa ave incapaz de voar; uma criatura parecida com um marsupial mas tão grande quanto um rinoceronte; e um canguru com 2 metros de altura e um focinho estranhamente achatado.
Também encontraram restos de um bicho que lembra uma anta; um monstro com aparência de hipopótamo; e um lagarto que media 6 metros e devorava suas presas até a última pena.
Essa megafauna dominava os ecossistemas em que vivia - mas aí ela desapareceu em um surto de extinções que eliminou quase todos os animais que pesavam mais de 45 quilos. O que, exatamente, provocou esse extermínio em massa?
Considerando tudo o que já foi dito sobre o fim dos dinossauros, é um tanto intrigante que não se tenha dedicado igual atenção à megafauna do Pleistoceno - afinal, eram criaturas com a qualidade dupla de serem extraordinariamente grandes e terem convivido com os seres humanos. Os homens pré-históricos jamais arremessaram lanças contra nenhum Tyrannosaurus rex, a não ser em histórias em quadrinhos. Por outro lado, sabemos com certeza que caçaram mamutes e mastodontes.
O desaparecimento da megafauna americana - mamutes, camelídeos, ursos gigantescos de focinho curto, tatus enormes, bois-almiscarados-do-bosque, gliptodontes, tigres-de-dente-de-sabre, lobos pré-históricos, preguiças e equinos imensos, entre outros - ocorreu logo após a chegada dos seres humanos ao continente, por volta de 13 mil anos atrás. Na década de 1960, o paleoecologista Paul Martin desenvolveu o que ficaria conhecida como a “hipótese da blitzkrieg”, ou seja, da ofensiva relâmpago. Segundo Martin, os seres humanos modernos provocaram devastação à medida que se dispersavam pelas Américas, usando lanças com ponta de pedra para dizimar animais que jamais haviam se defrontado com um predador tecnológico. Mas esse surto de extinção não foi completo. Na América do Norte, restaram os cervos, as antilocapras, os ursos-negros e uma espécie menor de bisão.             
Os ursos-pardos e os recém-chegados uapitis e alces também ampliaram seus âmbitos. A América do Sul, por sua vez, reteve as onças e os lhamas.
Na Austrália, o maior animal terrestre é o canguru-vermelho. O que houve com os animais de grande porte dali é um dos enigmas paleontológicos mais intrigantes do planeta. Durante anos, os cientistas viram nas mudanças climáticas a causa dessas extinções. E, de fato, há 1 milhão de anos a Austrália vem sofrendo um processo de ressecamento, e sua megafauna viu-se presa a um continente que se tornava cada vez mais árido e despojado de vegetação. O paleontólogo Tim Flannery sugere que os seres humanos, que ali chegaram por volta de 50 mil anos atrás, usavam o fogo para caçar, o que levou ao desmatamento e a uma significativa ruptura do ciclo hidrológico.
De uma coisa temos certeza, diz Flannery. Algo extraordinário ocorreu aos animais terrestres na Austrália, e de modo abrupto (o quão abrupto ainda é motivo de discussão), por volta de 46 mil anos atrás, após a chegada de um predador inteligente e capaz de usar instrumentos.
Em 1994, Flannery publicou o livro The Future Eaters (literalmente, “Os comedores do futuro”, não lançado no Brasil), no qual propôs uma versão oposta à da hipótese da blitzkrieg, proposta por Paul Martin. E também apresentou um argumento bem mais amplo e ambicioso: o de que os seres humanos em geral constituem um tipo de animal no planeta propenso a arruinar os ecossistemas e a destruir o próprio futuro.
O livro de Flannery desencadeou muita polêmica. Houve quem achasse que ele estava criticando os aborígines, que se orgulham de viver em harmonia com a natureza. O problema fundamental da hipótese de Flannery é que não há nenhum indício direto de que os seres humanos tenham destruído a megafauna - nem mesmo um único animal. Seria conveniente se alguém achasse um esqueleto de Diprotodon com uma ponta de lança cravada na costela - ou talvez uma pilha de ossos de Thylacoleo perto de cinzas de uma fogueira humana. Tais sítios de matanças já foram encontrados nas Américas, mas não surgiu até agora nenhum equivalente arqueológico na Austrália.
Outra objeção à explicação de Flannery é de ordem mais prática: como seres humanos armados somente com lanças e fogo poderia ter aniquilado tantas espécies? Relativamente poucas pessoas, talvez na casa dos milhares, teriam de exterminar uma população de animais dispersa por uma enorme variedade de hábitats e âmbitos em todo um continente. Extinção é outra coisa: por definição, não resta nenhum espécime.
Em grande parte, a discussão sobre a megafauna gira em torno das técnicas de datação dos ossos antigos e dos sedimentos nos quais estão enterrados. Tudo é uma questão de data. Se os cientistas conseguirem mostrar que a megafauna desapareceu de modo rápido, com a extinção ocorrendo no intervalo de poucos séculos ou mesmo de um par de milênios, após a chegada dos seres humanos, há fortes indícios de que uma coisa foi consequência da outra. Flannery argumenta que as ilhas nos dão nova pista para o mistério.
 Algumas espécies da megafauna sobreviveram na Tasmânia até 40 mil anos atrás, quando a diminuição no nível do mar permitiu que os seres humanos, segundo ele, desembarcassem na ilha. Isso ocorreu em paralelo com a situação dos mamutes na Sibéria e das preguiças gigantes nas Américas, que também encontraram refúgio em ilhas e ainda sobreviveram por milhares de anos após as ondas mais amplas de extinção nos continentes.
 Esse tipo de argumentação baseia-se na falta de indícios fósseis relativos a uma convivência prolongada entre os seres humanos e a megafauna. Se, no entanto, encontrarmos indicações de que os homens e a megafauna viveram lado a lado durante milhares ou dezenas de milhares de anos, então o papel dos seres humanos nas extinções seria bem mais incerto, na melhor das hipóteses. E certamente isso invalidaria a noção de uma ofensiva relâmpago, uma blitzkrieg ao estilo de Martin e Flannery.
Todavia, há um lugar no interior australiano em que talvez esses indícios possam ser encontrados. Porém, ainda não se sabe qual hipótese de extinção eles ajudam a confirmar.
Cuddie Springs é um lago efêmero na região centro-norte do estado de Nova Gales do Sul. E foi lá que, em 1878, ao cavar um poço, um fazendeiro descobriu um depósito de ossos de megafauna. Atualmente, a pessoa que mais divulgou o sítio é a arqueóloga Judith Field, da Universidade de Sydney, que dedicou sua carreira à interpretação dos fósseis exumados no lago.
Em 1991, ainda estudante de graduação, Judith descobriu ali ossadas de megafauna bem ao lado de ferramentas líticas - um achado merecedor de manchetes. Segundo ela, há duas camadas comprovando a associação, uma delas datada de 30 mil anos e a outra de 35 mil anos atrás. Se essa datação for confiável, isso significa que os seres humanos e a megafauna conviveram na Austrália por um período em torno de 20 mil anos. “O que podemos ver em Cuddie Springs é que houve uma prolongada sobreposição de seres humanos e megafauna”, diz Judith.
Nada disso, dizem os críticos. Para eles, os fósseis foram deslocados de seus locais originais e acabaram se incrustrando em camadas sedimentares mais recentes. Bert Roberts, coautor de um estudo que defende algum tipo de causa humana nas extinções da megafauna, examinou grãos de areia de Cuddy Springs e afirma que encontrou grãos muito recentes mesclados a fósseis supostamente bem mais antigos. E isso o convenceu de que a estratigrafia do local não é esclarecedora.
Judith contesta tal interpretação e argumenta que os seus críticos estão comprometidos demais com a hipótese de um impacto humano na extinção da megafauna. Cuddie Springs estava inundada e inacessível quando fui à Austrália para fazer esta reportagem. Em vez disso, Judith e eu resolvemos visitar outro famoso depósito de ossadas, um local conhecido como grutas Wellington. Para chegar lá, viajamos cinco horas de carro desde Sydney, cruzando as montanhas Azuis e áreas pastoris que lembram muito a ondulada paisagem costeira do centro da Califórnia. Quando paramos no estacionamento das grutas, fomos recebidos por um marsupial-gigante de fibra de vidro. Era o animal de maior porte da megafauna, o maior marsupial conhecido que já palmilhou este planeta. Volumoso e com membros atarracados, o Diprotodon parece ter sido condenado para todo o sempre a ser descrito nos museus como “desajeitado”.
Conhecemos Mike Augee, um cientista residente que nos mostrou o local em que o primeiro Diprotodon foi encontrado. É um buraco largo no chão, entrada de uma galeria vertical sinuosa através de um morro de calcário, protegido por uma grade metálica. “Este é o local sagrado da paleontologia australiana”, anuncia Augee.
O motivo é o seguinte: em 1830, um funcionário local chamado George Rankin desceu pelo buraco amarrado por uma corda presa a uma saliência na parede da caverna. Depois se percebeu que essa protuberância era na verdade um osso.
Naquele mesmo ano, o topógrafo Thomas Mitchell explorou as grutas na área e enviou os fósseis ali recolhidos para Richard Owen, o paleontólogo britânico que ficaria famoso ao revelar a existência dos dinossauros. Owen constatou que os ossos extraídos das grutas Wellington pertenciam a marsupiais extintos. Pergunto a Augee o que ele acha que pode ter ocorrido com a megafauna australiana. “Acredito 100% no modelo proposto por Tim Flannery”, responde, fazendo com que Judith levante na hora uma sobrancelha. “Mas é uma caverna”, acrescenta Augee. “E não dá para confiar em datações do carvão vegetal encontrado em cavernas.”
Bem lembrado. Pois, sabemos, muita coisa pode ser levada pela água até o interior das cavernas. E a água aos poucos também reacomoda as camadas de sedimentos. Coisas mais recentes e pesadas afundam em camadas mais antigas.
O solo tem mais artimanhas do que se imagina.
Judith Field faz uma observação crucial a respeito de seus dados científicos - ela ainda não dispõe de quantidade de informações necessária e ainda não há pesquisas suficientes para as narrativas codificadas do passado. “Existem cerca de 200 sítios fossilíferos do Pleistoceno tardio na Austrália”, diz Judith. “Menos de 20 deles têm datações aceitas. Por enquanto, tudo o que temos para construir esses modelos explicativos complexos é um conjunto de dados precário.”
Ainda bem que existem caçadores de ossos em todo o continente. Os paleontólogos amadores desempenham papel crucial na descoberta de ossadas da megafauna. Lindsay Hatcher é um deles.
Hatcher é um homem descontraído e simpático que conheci perto do vilarejo de Margaret River, quatro horas de carro ao sul de Perth.
Foi ele o responsável por um dos achados fósseis mais importantes na região. Em 1992, ele resolveu explorar o lugar chamado de caverna da Entrada Apertada. Hatcher seguiu pelo caminho mais usado pelos espeleólogos amadores, mas acabou topando com um monte de fósseis. “Vocês estão andando em cima de um canguru extinto”, comentou ele com seus acompanhantes. Um buraco no piso da gruta era, na verdade, a órbita ocular de um imenso canguru. Desde então, mais de 10 mil ossos de megafauna foram retirados da caverna da Entrada Apertada.
Perto do povoado de Margaret River há uma atração turística, a gruta Mammoth. Entre 1909 e 1915, os sedimentos que continham fósseis foram retirados da gruta e examinados de maneira tão descuidada que jamais seriam levados a sério por nenhum cientista atual. Mesmo assim, um osso em particular vem despertando muita curiosidade: é um fêmur no qual se vê um entalhe. Há uma réplica desse osso em exibição na gruta Mammoth. Na opinião de Hatcher, o entalhe foi feito por um instrumento afiado. E, quando contempla a gruta, ele reconhece ali um hábitat humano óbvio que proporcionaria excelente abrigo durante os dias e as noites inóspitos da Era Glacial. “É um lugar ótimo para as pessoas viverem. Protegido. Com fonte de água permanente na época. E muito bicho para servir de alimento”, comenta Hatcher, enquanto vagamos pelas galerias iluminadas da caverna.
Mas também é bem possível que a marca no fêmur tenha sido feita pelo dente aguçado de um leão-marsupial. Tudo depende da interpretação. A única coisa certa é que Hatcher vai prosseguir na busca, empenhando-se em contribuir para a solução do maior mistério da Austrália.
A Terra preserva a sua história de maneira acidental. Ossos desintegram-se, artefatos viram pó, terrenos sofrem erosão, o clima altera-se, florestas avançam e recuam, o curso dos rios muda - e o passado, quando não é obliterado, é obscurecido. Não há como evitar isso: qualquer explicação é elaborada com base em um conjunto restrito de dados. Há limites naturais.
Os primeiros habitantes da Austrália expressaram-se em pinturas rupestres nos afloramentos rochosos por todo o continente. Uma das pessoas com quem conversei foi o paleontólogo Peter Murray, baseado em Alice Springs. Seguimos de carro até um sítio arqueológico ao sul do vilarejo, onde o arenito avermelhado foi pintado com símbolos circulares e sinuosos. “Veja como são todos muito bonitos. E enigmáticos”, comenta Murray. “Mas nada de megafauna.”
No entanto, Murray estudou uma pintura rupestre na Terra de Arnhem, no norte da Austrália, que mostra um animal parecido com um marsupial da megafauna conhecido como Palorchestes. Com frequência comparado a um tapir, ele tinha uma tromba pequena e uma língua tão comprida quanto a de uma girafa. Na Austrália ocidental, outro sítio tem pinturas rupestres representando o que parece ser um caçador humano diante de um leão-marsupial ou um tigre-da-tasmânia - uma distinção importante, pois o leão-marsupial se extinguiu há 45 mil anos e o tigre-da-tasmânia resistiu até o início do século 20.
Em Alice Springs, durante um jantar de carne de camelo, molho de beterraba e um poucot de emu defumado, Murray comenta a respeito de sua profissão: “Cada passo depende de interpretações. Os dados não falam por si mesmos.”
A hipótese da blitzkrieg traça um quadro alarmante, no qual os seres humanos aniquilam com rapidez uma enorme quantidade de animais. Mas há um cenário ainda mais sinistro: as extinções não teriam ocorrido em função de uma matança desenfreada, e sim de uma sequência de eventos cada vez mais intensos, incluindo mudanças no clima, no decorrer dos quais as pessoas envolvidas não conseguiam discernir plenamente o que estava acontecendo no meio ambiente.
O que nos traz aos dias de hoje.
“O modo como vivemos no passado e como vivemos atualmente está destruindo o nosso futuro”, argumenta Flannery. Somente aos poucos, com o passar do tempo, damos conta do tanto que alteramos o mundo e do tanto que o nosso florescimento está prejudicando ou mesmo levando à extinção incontáveis espécies.
Depois de circular pela Austrália durante duas semanas, esquadrinhando grutas em três estados e fazendo caminhadas pelo mato, volto a Sydney para uma conversa final com Judith Field. Ela retoma o assunto da estratigrafia controversa de Cuddie Springs, das camadas de sedimentos em que a megafauna e os utensílios humanos podem estar associados e da história dos desentendimentos entre os cientistas. Ela está falando, mas, de repente, para e me diz: “Você parece exausto”. Eu estava apoiando a cabeça na mão - e imagino que prestes a pegar no sono.
“Sinto muito não ter conseguido fazer com que a história ficasse cristalina”, comenta ela, ao telefone, semanas depois. “Não, ficou bem claro”, respondo. “É uma confusão perfeita.”
No entanto, vamos continuar tateando em meio a essa confusão. A ciência é um procedimento laborioso e às vezes os avanços só ocorrem depois de muitos tombos e becos sem saída. Basta pensar em Rod Wells na gruta de fósseis Victoria, arrastando-se por galerias tão estreitas que era obrigado a virar a cabeça de lado a fim de transpor os obstáculos. Bracejando. Escavando.
Às vezes topamos com uma passagem intransponível. Então, só nos resta refazer o caminho.

ESTA MATÉRIA FOI RETIRADA DA REVISTA  NATIONAL GEOGRAPHIC. EDICÃO 127. ESCRITA POR JOEL ACHENBACH. UMA MARAVILHA DE MATÉRIA.

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